Em Queer, Luca Guadagnino filma a solidão de homens exilados tentando viver como quem são, em uma jornada de desejo e libertação.
No rolar dos créditos finais de Queer, os versos cantados por Caetano Veloso, em canção original escrita pela dupla Trent Reznor e Atticus Ross, resumem o sentimento do protagonista ao longo de sua jornada: “How can a man who sees and hears / Be other than sad?” (“Como pode um homem, que vê e que ouve / Não ser triste?”), em um dos encerramentos cinematográficos mais profundos deste ano.
Diferentemente de Rivais, o outro longa lançado pelo diretor Luca Guadagnino neste ano, cujo calor provêm de uma mescla entre tênis e a atração sexual do trio protagonista, Queer trilha o caminho da introspecção, através de uma fuga de um mundo conservador na primeira metade do século XX, no qual homens passam períodos de suas vidas em uma cidade no México a fim de dar asas à própria sexualidade, e se relacionar com outros homens sem se preocupar em sofrerem com a violência e o preconceito da sociedade norte-americana.
Nesse contexto de exílio, eles se sentem renegados em relação as próprias vidas, e vivem em ciclos, buscando por algo que talvez julguem impossível, ao tempo, de ser encontrado, sem enxergar muita perspectiva à própria frente. Entre tantos outros, é também o caso de Lee, vivido por Daniel Craig, em talvez uma das melhores atuações de sua carreira.
É como se, no meio em que vive, Lee fosse uma espécie de “Fitzcarraldo”, que sonha por algo muito maior do que si. Com seu terno branco e o chapéu, ele transita entre os bares da região e sonha em “fisgar o peixe grande”, manifestado em seu desejo de conquistar parceiros que julga serem inalcançáveis, dentre os tantos possíveis que se encontram ao redor. É exatamente o que sente quando avista o misterioso Eugene pela primeira vez (muito bem vivido por Drew Starkey), um homem que, a priori, questiona-se os reais interesses, quando se senta à mesa com uma moça.
Aos poucos, enquanto se conhecem, compreendemos que a atração sexual de Lee é ligada a um desafio, e se encanta pelas incertezas que Eugene oferece, para si mesmo e para o próprio relacionamento que se estabelece entre os dois, em uma paixão movida pelo mistério.
Ao lado de Eugene, Lee pouco a pouco descontrói aquela sua personalidade durona, que sempre é reforçada através do revólver levado à cintura, e revela um interior sensível e até um tanto amargurado com a vida que leva, baseada em estímulos superficiais apenas possíveis de serem manifestados em uma terra que não a sua – e por isso, leia-se: a impossibilidade de ser quem realmente é, e dar asas aos próprios sonhos e desejos em seu país natal, e mais ainda buscar por relacionamentos duradouros e construir uma vida ao lado de um parceiro, frente ao preconceito latente nos Estados Unidos.
Enquanto falam sobre coisas triviais, a paixão sentida por Lee é representada, em tela, pela imagem, em mais um ótimo uso da linguagem cinematográfica por Guadagnino, em sua forma de materializar visualmente os desejos de seu protagonista com autoralidade e criatividade, de maneira fantasmagórica, mostrando os pensamentos do personagem quando ao lado do outro a partir daquilo que desejaria fazer – um gesto de carinho, com um braço transparente, por exemplo, mostrando apenas intenção.
A medida em que se demonstra uma reciprocidade, o calor aumenta e os corpos transpiram cada vez mais, ainda que tudo aquilo permaneça, até o final, sendo permeado por um mistério e pela dúvida acerca dos verdadeiros sentimentos e posteriores consequências.
A viagem pelos países da América do Sul apenas reforça essa dúvida, em uma certa conturbação na maneira como os personagens em cena lidam um com o outro, e sobretudo pelas dúvidas que os atos de Eugene suscitam afinal de contas. A busca de Lee por uma droga capaz de fomentar a telecinese é apenas mais uma maneira de expor suas tristezas enquanto um homem reprimido, na tentativa de realizar os próprios desejos e os próprios sentimentos, sem precisar externalizar sobre isso.
No fundo, pelo histórico da obra que adapta, escrita na década de 1950, e publicada cerca de três décadas depois, é possível enxergar Queer como um grito de socorro e desabafo de seu autor, William S. Burroughs, que durante anos escondeu a própria orientação sexual em temor à própria vida diante de uma sociedade – e família - conservadora. É muito claro que ele se enxerga na imagem de Lee, e que junto do personagem embarca nessa jornada em busca de desejo e liberdade, a qual Guadagnino tão bem filma – e através disso, tão bem mantém viva sua memória como escritor.
Ao mesmo tempo, é como se através de Queer Luca Guadagnino fizesse um grande apanhado do melhor de seu cinema recente, enquanto trabalha o surrealismo e a fantasia como metáforas dentro de uma narrativa que, indiscutivelmente, exala uma tensão sexual típica de seu estilo, ainda que de maneira completamente diferente daquilo que fizera em Rivais ou Me Chame Pelo Seu Nome, por exemplo, revelando (ainda mais) que possui uma versatilidade como poucos cineastas. No entanto, o romance ainda é um denominador comum, manifestado a suas próprias maneiras dentro de seus respectivos contextos, com base na construção da linguagem orquestrada por cada uma das obras. É mais um filme inesquecível do diretor.
Avaliação: 4.5/5
Queer (Idem, 2024)
Direção: Luca Guadagnino
Roteiro: Justin Kuritzkes, adaptado de William S. Burroughs (livro)
Gênero: Drama, Romance, Thriller
Origem: EUA, Itália
Duração: 136 minutos (2h16)
Disponível: Cinemas
Sinopse: Na Cidade do México dos anos 1950, um expatriado americano de meia-idade vive solitariamente em uma pequena comunidade americana. No entanto, a chegada de um jovem o desperta para finalmente estabelecer uma conexão com alguém. (Fonte: IMDB - Adaptado)
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