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Foto do escritorHenrique Debski

CRÍTICA | Grande Sertão, de Guel Arraes (Idem, 2024)

Em uma homenagem a Guimarães Rosa, o Grande Sertão de Guel Arraes transporta o lirismo do autor para os dias de hoje.



A obra do celebrado autor mineiro João Guimarães Rosa rende, até os dias de hoje, muitas discussões, sobretudo pela sagacidade de sua literatura, e brilhantismo na habilidade de contar histórias. Ao mesmo tempo, a complexidade de seus textos, nos mais diversos aspectos, os torna difíceis de adaptar para as telas de cinema ou da televisão, algo que fica claro com as inúmeras tentativas, algumas muito boas e outras não tão bem-sucedidas.

 

Felizmente, Grande Sertão encontrou lugar no primeiro grupo. Para a adaptação do quase inadaptável Grande Sertão: Veredas, publicado em 1956, era necessário muito cuidado para não esvaziar o sentido da obra original, e mesmo assim ser capaz de fazer sentido e progredir com a naturalidade do comportamento do ser-humano em apenas duas horas na tela do cinema.

 

A decisão de como fazer, para tanto, se deu com a reunião dos esforços de alguns dos mais importantes nomes do cinema brasileiro contemporâneo, a partir da produção assinada por Heitor Dhalia, e no roteiro escrito por Jorge Furtado e Guel Arraes, com direção do segundo.

 

Nas mãos de realizadores competentes e talentosos, Grande Sertão rompe com as adaptações anteriores de Guimarães Rosa ao utilizar toda a sua base narrativa para arriscar com algo novo, mais próximo do ambiente em que o cinema nacional se encontra nos últimos anos, e consequentemente mais próximo, também, da realidade do brasileiro, ao optar por um “favela movie”.

 

O Sertão construído por Guel Arraes realoca toda a história de Riobaldo e Diadorim (muito bem na pele de Caio Blat e Luisa Arraes) de um sertão na década de cinquenta para um universo distópico, uma grande favela em um presente incerto. Os jagunços de Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi, muito bem) são convertidos em traficantes, em uma clara e manifesta oposição a um governo corrupto, representado pela força policial comandada por Zé Bebelo (surpreendentemente vivido por Luis Miranda), um homem honesto que aos poucos se dá conta da realidade ao seu entorno.

 

É nessa dinâmica de guerra urbana que Riobaldo constantemente reflete acerca do lugar onde vive e de com quem se relaciona. Seus comentários críticos a respeito da própria história perpetuam suas visões daqueles a quem servia, em uma tentativa, sempre ativa, de transformar o Sertão em um lugar melhor, e livre dos poderes usurpadores daqueles que só pensam em si, como Hermógenes (Eduardo Sterblitch, irreconhecível). É por essa razão que existem tantas reviravoltas ao longo da narrativa, e mudanças significativas em seu próprio olhar, que acaba sendo passado para nós.

 

O aspecto desértico continua predominante, mas de outras maneiras que não necessariamente apenas pela ausência da chuva e da terra seca. O acinzentado das grandes construções de concreto, com o bege do tijolo, domina a paisagem daquela região empobrecida e que enfrenta constantes lutas pelo poder. A direção de arte assinada por Valdy Lopes Jn., junto à produção artística de Flávia Lacerda, enfatizam bem o cenário em que a trama se passa, e usa desse ambiente urbano e labiríntico para desenvolver o próprio clímax.

 

E como se a adaptação cuidadosa de Arraes e Furtado não fosse o suficiente, a obra ainda faz com que as palavras de Guimarães Rosa sigam vivas quando todo o texto se desenrola a partir do lirismo típico do autor, em diálogos pronunciados de maneira poética, como um grande espetáculo teatral, mas com todas as características cinematográficas, desde a montagem que busca pela imersão até a fotografia que explora as emoções dos personagens no olhar, e a trilha musical original que, de fundo, acaba servindo como narradora em determinadas passagens.

 

Mas nessa épica adaptação, é uma pena que, por vezes, Grande Sertão renegue, ou dê menos importância, à ação. Algumas coreografias, com potencial, parecem executadas em câmera lenta – como a primeira cena de Diadorim em sua versão adulta, um plano sequência interessante -, ou confusas pela própria montagem com muitos cortes, que acaba perdendo um pouco do potencial da tensão.

 

Ainda assim, a fragilidade da ação não tira os méritos de Grande Sertão em adaptar uma obra tão complexa. Em apenas (ou melhor, quase) duas horas, somos envolvidos em um universo fictício embebido na realidade em que vivemos, provando que, apesar das alterações feitas para aproximar a narrativa do presente, o texto de Guimarães, escrito já há tantas décadas, ainda se molda ao que hoje segue, de uma forma ou de outra, sendo o Brasil.

 

Avaliação: 4/5

 

Grande Sertão (Idem, 2024)

Direção: Guel Arraes

Roteiro: Guel Arraes e Jorge Furtado, adaptado de Guimarães Rosa (livro)

Dirigido por Guel Arraes

Gênero: Thriller, Ação, Drama

Origem: Brasil

Duração: 108 minutos (1h48)

Disponível: Cinemas (via Paris Filmes)

 

Sinopse: Numa grande comunidade da periferia brasileira chamada “Grande Sertão”, a luta entre policiais e bandidos assume ares de guerra e traz à tona questões como lealdade e traição, vida e morte, amor e coragem, Deus e o diabo. Nesse ambiente, Riobaldo entra para o crime por amor a Diadorim, um dos bandidos, mas nunca tem a coragem de revelar sua paixão.

(Fonte: Primeiro Plano / Paris Filmes - Adaptado)

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