Em Gladiador II, Ridley Scott brinca de pão e circo: nos dá um espetáculo de ação e um bom thriller político em troca de liberdade histórica.
Lembro-me como se fosse ontem da primeira vez em que assisti à Gladiador, em uma aula de História, quando estava no sexto ano do Fundamental II. Nos ensinando sobre o Império Romano, a professora Joice, a qual me despertou a paixão pela matéria, nos passou o filme como forma de ilustrar, mesmo que não de maneira tão fidedigna, o estilo de vida na Roma antiga. Desde então, assisti ao filme mais algumas vezes, e no lançamento desta sequência encontrei a oportunidade de visita-lo novamente, e talvez tenha gostado ainda mais do que quando adolescente, pela própria ação visceral, mas especialmente por seu lado politico e a jornada de Maximus enquanto herói.
Confesso, porém, que a ideia desta sequência me assustava. Não só pelos deslizes recentes de Ridley Scott com Casa Gucci, como também pelo roteirista David Scarpa, responsável por Napoleão, um projeto que se vende como um épico biográfico sem qualquer respeito à História, indo além das tradicionais simplificações – algo que até podemos deixar passar -, mas abraçando teses refutadas há décadas por historiadores envolvendo os feitos de seu personagem-título, vendidas como se fossem verdades.
Felizmente, Gladiador nunca teve essa pretensão, e sempre se considerou uma ficção histórica, se apoderando de personagens reais, e os inserindo em contextos e tramas fictícias, ainda que com o pé no chão, com certo realismo e algumas liberdades ocasionais em relação ao emprego de fantasia.
Já em Gladiador II, frente ao sucesso do primeiro filme, as evoluções tecnológicas e o maior orçamento do qual dispunha, Ridley Scott decidiu se divertir um pouco mais, e dar asas ainda maiores – e mais absurdas – ao pão e circo de sua Roma, a partir de espetáculos nas arenas ainda mais elaborados, abraçando de vez seu lado fantasioso, nos quais o protagonista de Paul Mescal precisa provar seu valor, rumo a colocar em prática o sonho de Marco Aurélio na criação de uma República Romana.
Durante parte do filme – mais especificamente, a primeira metade -, acreditei que este seria nada mais que uma refilmagem do clássico de 2000 com uma roupagem de sequência, até porque o novo protagonista, Lucius, basicamente segue, à risca, os mesmos passos do personagem de Russell Crowe, com suas particularidades, é claro, mas num mesmo contexto geral.
São elementos parecidos que os unem, desde a morte das pessoas amadas, a escravidão, o destaque em combate, a compra de sua pessoa por um grande comerciante, a íntima ligação pessoal com o poder e quem o exerce, e por aí vai, para além do desejo de vingança. Acontece que aos poucos o roteiro de David Scarpa e Peter Craig começa a ressignificar a jornada do novo herói e aquilo que o circunda, ao frustrar os rumos de uma revolta interna que outrora funcionou, como forma de forçar o longa a explorar novos rumos, a partir de um tabuleiro com peças parecidas, mas que exercem funções diversas, com novas regras em um novo jogo.
Se até então ficava em uma zona de conforto, essa “reviravolta” faz com que a obra engrene de verdade, brincando com a imprevisibilidade e retrabalhando todas as decisões do jogo politico que constrói, o qual, a todo tempo, firma ligações com a ação (que conta com uma montagem muito melhor) e a arena como meio para se consolidar vinganças e apaziguar os ânimos do povo romano através dos jogos, prosperando a corrupção e os interesses de poucos em detrimento de todos – o clássico problema que enfrentamos até hoje.
Acontece que, na contramão do longa anterior, ao tentar adicionar camadas de complexidade à política, o texto nem sempre se lembra de contextualizá-la. Os senadores perdem um pouco a voz neste novo capítulo, assim como pouco sabemos a respeito dos imperadores gêmeos Geta e Caraccalla (muito bem vividos por Joseph Quinn e Fred Hechinger), bons antagonistas, mas sem tantas oportunidades de terem contadas a ascensão ao poder a razão para serem como são, tirânicos e psicóticos.
Ainda assim, suas funções são bem desempenhadas dentro do texto, como acessório para o verdadeiro antagonista dar as caras, em mais uma grande intepretação do veterano Denzel Washington, com um desagradável e assustador sorriso carregado de sarcasmo e maldade, enquanto manipula muito bem as emoções, próprias e alheias, em prol de suas ambições políticas acentuadas. Fora Mescal, mais uma vez reforçando seu talento em carregar o protagonismo, Denzel é o grande destaque.
É mais uma prova de que Ridley Scott, já com seus 86 anos de idade, ainda tem vigor para a condução de grandes épicos de ação. Mesmo que vez ou outra tenha se atrapalhado nos últimos anos, é visível uma paixão pelo projeto de sequência de um dos seus maiores filmes; e mais, uma tentativa de ir além do que já fizera antes.
Em uma excelente entrevista recente ao Estadão, conduzida pelo crítico Bruno Carmelo, o cineasta exaltou sua paixão pela visita, através do cinema, ao mundo de outrora, que já não existe mais. É essencialmente o que faz aqui, com diversas liberdades em como brinca com a História – afinal, é assumidamente uma ficção -, e com os combates nas arenas, agora com barcos e até tubarões. A partir disso, é como se Ridley nos levasse o pão e circo à sala de cinema, nos dando um grande espetáculo histórico, com gladiadores e grandes conspirações políticas, em troca de não ligarmos para suas aventuras. E acho que, nesse caso, vale a pena cedermos à diversão.
Avaliação: 4/5
Gladiador II (Gladiator II, 2024)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: David Scarpa e Peter Craig
Gênero: Ação, Thriller, Drama
Origem: EUA, Reino Unido
Duração: 158 minutos (2h28)
Disponível: Cinemas
Sinopse: Após ter seu lar conquistado pelos imperadores tirânicos que agora comandam Roma, Lucius é forçado a entrar no Coliseu e deve olhar para o seu passado para encontrar força e devolver a glória de Roma ao seu povo. (Fonte: IMDB)
Link para a entrevista de Bruno Carmelo com Ridley Scott: https://www.estadao.com.br/cultura/cinema/ridley-scott-amo-recriar-um-mundo-que-nao-existe-mais-diz-diretor-de-gladiador-2/?srsltid=AfmBOoo2zyc7rxyXwB5Uo0VAGu6KDsYQlaagX0XEK9uhDjpc5-OI7qfB