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Foto do escritorHenrique Debski

CRÍTICA | Ficção Americana, de Cord Jefferson (American Fiction, 2023)

Na estreia de Cord Jefferson na direção, “American Fiction” coloca o dedo em uma ferida profunda numa excelente sátira regada a humor ácido.



A primeira situação apresentada por “American Fiction” é uma ótima maneira de compreender o universo em que se passa o filme, quando o protagonista, Monk, escritor e professor universitário, enfrenta uma discussão sobre termos racistas na literatura norte-americana iniciada por uma aluna branca, cujo discurso caminha para censurar algo historicamente “ofensivo” que nem a ela diz respeito. A resposta certeira do personagem apenas reforça a falta de legitimidade e as intenções de sua aluna, que, ao sair chorando, dá o pontapé inicial para os eventos centrais da narrativa.

 

Essa caricatura construída em torno da aluna de Monk se estende para quase todos os personagens brancos da obra, especialmente os envolvidos no mercado editorial e cinematográfico, ao firmarem uma dominação cultural e sobretudo racial pautada na desgraça e nos estereótipos da população negra norte-americana, subvalorizando seus realizadores de forma que apenas sejam ouvidos quando abordam aquilo que deles é esperado.

 

Essa postura racista, que normalmente vem disfarçada em falas simpáticas pregando por um falso interesse em representatividade (apenas com a intenção de suprir as “obrigações” do mercado e evitar críticas), é o que motiva Monk a colocar em prática seu plano experimental, e alterar seu estilo de literatura, sob um pseudônimo, para explorar uma escrita repleta de gírias, e de caráter genérico, de forma a suprir uma demanda editorial (e naturalmente preconceituosa). A maneira como nos revela a qualidade dessa escrita, inclusive, é criativa quando encena um trecho do livro enquanto o protagonista o escreve, alterando palavras e ações para torna-las cada vez mais caricatas e exageradas.

 

Para tanto, o texto do talentoso roteirista Cord Jefferson (adaptado do livro de Percival Everett), estreante na direção com “American Fiction”, é muito cuidadoso para não se debruçar sobre os aspectos que critica, sobretudo a superficialidade narrativa. Assim, opta por explorar a persona de Monk em três frentes que constantemente transbordam uma na outra, nas interligações que existem entre seu aspecto profissional, vista em prática com o exemplo de sua namorada, uma leitora média, que representa sua vida amorosa, e sua vida familiar, normal, e totalmente diferente da maneira narrada em seu livro-experimento.

 

Nesse momento Jeffrey Wright demonstra sua enorme versatilidade, especialmente pela maneira como constrói seu personagem no perfeito limiar entre a seriedade e a acidez de um humor permeado por um olhar triste e desesperançoso com o mundo em que vive, essa que cresce gradativamente a medida que seu experimento revela de maneira gritante aquilo que mais lhe incomoda.

 

Mesmo que muito se evite adotar uma fórmula, no entanto, nem sempre Jefferson consegue disfarça-la, especialmente na estruturação dos três atos e na presença dos conflitos narrativos, estrategicamente posicionados de forma a demarcar cada um dos três momentos. Mas aquele cuidado novamente se faz presente aqui, na elaboração de um desfecho inesperado, que puxa pela metalinguagem e zomba explicitamente do padrão “Oscar bait” de finais emocionantes e expositivos, que explicam a moral da história na cara do espectador. Pelo contrário, o encerramento se faz com a naturalidade de uma conversa, sem aquela elegância visual as vezes até constrangedora, mas de forma limpa e condizente com a proposta.

 

E assim a sátira de “American Fiction” revela, sob um humor certeiro e refinado, uma tendência mercadológica vazia e preconceituosa, cujo racismo estrutural e a falsa representatividade estão mais do que visíveis. É uma grande estreia para Cord Jefferson na cadeira de diretor, cuja comédia dramática eloquente toca o dedo em uma ferida cada vez mais profunda e que exige tratamento.

 

Avaliação: 4/5

 

Ficção Americana (American Fiction, 2023)

Direção: Cord Jefferson

Roteiro: Cord Jefferson, adaptado de Percival Everett (livro)

Gênero: Comédia, Drama

Origem: EUA

Duração: 117 minutos (1h57)

Disponível: Amazon Prime Video

 

Sinopse: Um romancista que está cansado de ver o sistema lucrar com o entretenimento "negro" usa um pseudônimo para escrever um livro que o leva ao coração da hipocrisia e da loucura que ele diz desprezar. (Fonte: IMDB)

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