Em Disclaimer, Alfonso Cuarón nos oferece um quebra-cabeça de pontos de vista, e aos poucos nos auxilia a montá-lo.
Afastado dos holofotes desde seu longa mais pessoal, Roma, lançado em 2018, Alfonso Cuarón apenas se envolveu na produção de filmes e séries, mas, nesse meio tempo, nem escreveu ou dirigiu qualquer projeto. Seu ressurgimento, então, se deu neste ano com a minissérie Disclaimer, acompanhado por um elenco de peso.
Ao longo de sete episódios, acompanhamos a uma narrativa não linear, na qual fantasmas do passado assolam o presente da premiada jornalista Catherine Ravenscroft, ao custo de toda a sua vida – trabalho, família e reconhecimento – a partir de uma mescla entre fatos do presente, e de passados recentes e distantes, em um lapso temporal de duas décadas.
Acontece que, desde o primeiro episódio, Cuaron sempre deixa algo bastante claro: cada arco oferece, ao espectador, um ponto de vista diferente acerca da situação. Nem sempre tudo aquilo que será oferecido é realmente uma verdade, senão uma visão, específica e enviesada, de um fato. Naturalmente, o cineasta nos fornece, também, mecanismos visuais e narrativos para distinguir o que pode estar e o que pode não estar distorcido por aspectos pessoais e sentimentais.
Isso se manifesta através da forma como o diretor enxerga cada um de seus personagens, por meio de uma câmera que se comporta de maneiras distintas enquanto acompanha seus arcos. Por exemplo, o aspecto mais formalista da fotografia para Catherine (vivida com excelência por Cate Blanchet) revela uma admiração do cineasta pela integridade da protagonista frente o desabamento de sua vida pessoal, profissional e sobretudo familiar. Em contrapartida, quando filma seu marido, Robert (também ótimo na pele de Sacha Baron Cohen), as aproximações desconfortáveis e a câmera na mão revelam nele um estado de confusão mental e descontrole emocional; da mesma forma que olha para Stephen (muito bem vivido por Kevin Kline) sob o prisma de um homem amargurado, que planeja seus passos vingativos com uma precisão milimétrica para encobrir os próprios rastros.
Ainda que não captemos, necessariamente, tudo de primeira, somos capazes de montar o quebra-cabeças de Disclaimer sem que tenhamos todas as peças à disposição, justamente pela maneira brilhante com a qual Cuarón nos explica as regras de seu jogo a partir da imagem, com importantes complementos, não tão necessários, mas agregadores, junto de uma narração que revela pensamentos não exteriorizados pelos personagens, mas que nos ajuda a moldar nossa opinião a respeito de seu caráter.
Enquanto para alguns tal narração se faz presente, em mais ou menos vezes e momentos, para outros personagens o cineasta a dispensa – seja pela impossibilidade de conhece-los, senão pelas memórias passadas, ou seja pela inexpressividade, fruto de uma condição. É o caso dos jovens, Jonathan (Louis Partridge, muito versátil) e Nicholas (o também excelente Kodi Smit-McPhee), cujas atitudes e a linguagem corporal dizem muito sobre quem são e o que sentem.
Para além deles, a direção de Cuarón é tão atenta que demonstra grande preocupação para com a maneira como cada personagem se comporta e se manifesta perante uns aos outros – pelo próprio corpo e até o tom de voz. É nos detalhes, talvez pouco perceptíveis, mas influenciáveis ao espectador, que se estabelecem os posicionamentos de cada um frente à problemática, na dinâmica da cor rosa para simbolizar a família Brigstocke até a porta quebrada de um freezer, que superficialmente pode não parecer nada demais, mas revela muito de uma dinâmica familiar, que literalmente se estende para a relação entre pais e filhos.
Ademais, a pergunta mais importante é o que sustenta toda a narrativa de Disclaimer: Catherine é a culpada pela morte de Jonathan, ou é uma vítima? Através dessa dúvida, presente e sustentada durante toda a minissérie, Cuarón acaba desenvolvendo um tom metalinguístico ao seu projeto, pela forma como trabalha a ideia da imagem como fragmento da realidade, e um registro que se mantém entre o real e o manipulado, levando, inclusive, à possibilidade de discutir a revitimização da própria vítima, se tal tese for a que se sustenta ao final (não darei este spoiler).
Por isso que Disclaimer funciona tão bem: através de uma sensação angustiante, de incertezas e até de certa maneira claustrofóbica, Cuarón nos dá a oportunidade, no decorrer dos episódios, de fazer nossas próprias suposições e tirar conclusões diante daquilo que é mostrado. Ele nos manipula, mas a todo tempo incentiva a não ficar em cima do muro, e tentar antecipar o que vem adiante, com um controle exemplar da câmera, do set e das informações que nos são oferecidas, em uma experiência que poucos cineastas seriam capazes de reproduzir com tamanha excelência.
Avaliação: 4.5/5
Disclaimer – Minissérie (Idem, 2024)
Criação e direção: Alfonso Cuarón
Gênero: Drama, Thriller
Origem: EUA, Reino Unido
Duração: 7 episódios - 45 minutos em média cada episódio
Disponível: AppleTV+
Sinopse: Catherine Ravenscroft é uma respeitada e premiada jornalista investigativa. Quando recebe um romance de autoria desconhecida, Catherine fica horrorizada ao perceber que é a protagonista de uma história capaz de revelar segredos de seu passado, e precisa arrumar meios de impedir que este livro destrua sua vida pessoal e profissional.
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