Claudia Marschal relata uma história de abuso com o cuidado necessário para não recair no sensacionalismo, e torna as imagens do passado fantasmas de um tempo assustador.
Diante de um tema tão delicado, é necessário exaltar o trabalho da cineasta Claudia Marschal ao não escolher pelo sensacionalismo ou pelo excesso dramático enquanto conta a história dos traumas de Emmanuel Siess no documentário The Deposition.
Em 1993, no interior da França, em uma cidade quase na fronteira do país, o jovem Emmanuel, católico, aos 13 anos, foi abusado sexualmente pelo Padre Hubert, alguém que admirava e considerava um amigo, a quem confidenciava seus pensamentos mais íntimos e também suas tristezas. Não tendo o apoio necessário da família para tomar as providências com relação ao caso na época, o jovem passou a vida se sentindo culpado, até que, quase trinta anos depois, decide colocar sua ferida às claras, enfrentando seu pai e levando os fatos à própria Igreja.
No fundo, Emmanuel é apenas mais uma das muitas vítimas de algo que acontece, e ao que parece sempre aconteceu, com frequência na Igreja Católica, que vem sendo mais noticiado e enfrentado pela sociedade, e até pela própria instituição. Apesar de naturalmente criticada pelo documentário, e não sem razão para tal, há toda uma postura ativa por parte da Igreja em tentar, mesmo que tardiamente, levar os casos para as autoridades. Talvez por conta do documentário, ou para tentar retomar um fiel, parece que houve uma preocupação genuína do arcebispo contatado para lidar com a situação.
Porém, em razão do tempo decorrido, era imaginável que não fosse algo a se resolver legalmente, em virtude da prescrição. E desde o princípio, The Deposition nunca foi sobre levar o abuso à justiça, mas sobre lidar com as feridas mal cicatrizadas. É nesse sentido que Marschal constrói seu documentário, tentando se esquivar do tradicionalismo engessado das entrevistas e optando por articular uma relação entre o passado e o presente através da imagem, e não apenas dos relatos.
Esse viés imagético foi possibilitado pela enorme quantidade de filmes caseiros que a família de Emmanuel produziu em relação aos seus momentos na Igreja, literalmente a construção vizinha à sua casa. São desde os ritos religiosos, seu tempo como “coroinha” e até atividades lúdicas das quais participou que mostra, em cores, sua relação de proximidade com o mencionado padre, um homem jovem e que, nas palavras do próprio protagonista, “levou vida para a Igreja”.
Mas na forma como exibidas pela montagem, os momentos de felicidade anteriores ao episódio tornam-se cenas de um passado fantasmagórico, enquanto colocadas junto à depoimentos sofridos, para o chefe de polícia, o arcebispo ou ao próprio pai, todas gravadas pessoalmente ou pelo telefone, com uma raiva de décadas acumulada.
Não que, depois de adulto, Emmanuel tenha deixado de viver em razão do episódio. Ele aprendeu a seguir em frente, descobriu quem era de verdade, o que queria para sua vida. Até que as memórias retornaram e as feridas se reabriram após receber uma carta do padre, que encontrou com seu pai.
A partir disso, era tempo de enfrentar o passado, de confrontar as atitudes covardes do pai, que preferiu acreditar em um padre abusador do que no próprio filho. E afinal, de que as instituições religiosas são formadas afinal? De pessoas, com interesses como todas as outras, e que podem usar do próprio lugar para tirar vantagem de outras – o que o filme trabalha também em relação à Igreja Protestante, a qual Emmanuel também frequentou.
É assim que The Deposition trabalha sua narrativa, sem apelar para os exageros dramáticos, e tratando o tema com a solidez e a seriedade devida, enquanto nos aproxima, através das imagens passadas, e de um estrutura organizada, do protagonista Emmanuel, que abre seu coração e a própria intimidade em prol de uma natural conscientização sobre algo que frequentemente acontece, e da importância de denunciar, ainda que tardiamente, para que não mais ocorra.
Avaliação: 4/5
The Deposition (La Déposition, 2024)
Direção: Claudia Marschal
Roteiro: Claudia Marschal
Gênero: Documentário
Origem: França
Duração: 92 minutos (1h32)
77º Festival de Cinema de Locarno (Semaine de la Critique)
Sinopse: Em 1993, o jovem Emmanuel acredita ter encontrado um grande amigo em Hubert, o jovem padre de sua vila. Em uma tarde, Emmanuel sai da Igreja prometendo ao padre nunca contar a ninguém o que houve ali. Trinta anos depois, ele expõe seu trauma para o mundo, na tentativa de cicatrizar feridas dolorosas. (Fonte: Festival de Locarno - Adaptado)
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