Entre duas personalidades, Um Homem Diferente explora a crise de identidade e a insatisfação do ser humano com as próprias escolhas.
Por um momento, pensei que Um Homem Diferente fosse um filme de David Cronenberg. Certamente usado como inspiração pela direção de Aaron Schimberg, é inicialmente um grande drama existencialista, com um homem cuja face possui deformações em razão de uma doença imaginando como poderia ser a sua vida se ele não as tivesse.
É um questionamento justo. Dadas as condições de momento e situação, é claro, é comum ao ser humano pensar nas próprias vidas se espelhando no próximo. E com Edward, o protagonista, não é diferente. Até que surge a oportunidade de ter seu desejo realizado.
É acompanhado por uma trilha sonora de mistério que Edward se submete a inúmeros procedimentos médicos, em uma atmosfera, tanto tecnológica quanto na própria música de fundo, que emula muito bem uma pegada oitentista, para que os efeitos da doença possam se reverter, e sua face o torne uma pessoa como tantas outras – em sua visão. Sebastian Stan protagoniza alguns momentos angustiantes quando Schimberg flerta com o terror corporal nessa transformação rápida, mas não instantânea. É como se a identidade do personagem se esvaísse junto aos pedaços de carne que saem de seu rosto, rumo ao nascimento de uma nova pessoa. E aí vem o dilema: ele continuaria sendo o Edward?
Diante desse (re)nascimento, agora Edward, assumindo o nome de Guy, acredita que pode (re)construir sua vida sob novas oportunidades, amorosas e profissionais. Mas como nada fica totalmente para trás, obviamente sua antiga vida voltaria para “assombrá-lo”. É quando se estabelece uma relação com uma antiga conhecida do passado, visivelmente não duradoura, mas instigante o suficiente para atiçar nossa curiosidade para entender até onde aquilo pode ir.
Stan, com seu trabalho, constrói muito bem este personagem que, no mais humano dos sentimentos, não consegue enxergar a si próprio ou definir que o deseja. Na transição entre essas duas personalidades que se manifestam dentro de um mesmo corpo – antes e depois dos procedimentos -, há uma frequente crise de identidade e descontentamento acerca de si, o que em muito revela não ser a forma física que necessariamente o aborrece, mas sua própria persona, ao sempre sonhar ser aquilo que não é.
Nesse segundo momento, quem atua como catalisador para tal sentimento do protagonista, e até rouba a cena de Stan, é Adam Pearson, com o ar espirituoso e otimista de seu personagem, e mais ainda com o sotaque charmoso, de quem, em momento algum, deseja o pior ao amigo.
É uma relação corrosiva ao protagonista, que atiça sua mais profunda inveja e, através do humor ácido que permeia o filme (a comparação d’A Bela e a Fera é excelente, especialmente quando o protagonista acaba se tornando uma espécie de Gaston), faz com que suas ações cheguem às últimas consequências, dentro de um ciclo de violência que sai do psicológico e chega até mesmo ao plano físico.
Só acredito, no entanto, que Schimberg se perca um pouco nesse meio tempo, prolongando a duração, especialmente na forma como trabalhar esse conflito sem que alguns atos tenham um tom exagerado, ou ao menos incorram em situações problemáticas que pudessem tirar a relevância das discussões propostas pelo próprio longa. É algo que se manifesta a partir de uma atitude extrema, literalmente nos momentos finais, depois de uma grande briga – que, confesso, foi engraçada, mas cujo resultado poderia correr justamente para o lado contrário, de maneira ousada, e um desfecho mais alinhado com todo o trecho inicial, e não algo tão seguro, como escolhido.
Mesmo assim, Um Homem Diferente é uma boa experiência que se pauta no estranhamento do público, especialmente diante de um protagonista que mal sabe quem é, incorre em uma obsessão acerca de si, e entre suas duas vidas – os “zooms” repentinos da fotografia não estão lá à toa, inclusive. É instigante, e a atmosfera de mistério e imprevisibilidade são a cereja do bolo, junto das grandes atuações desse provocativo triângulo amoroso – com Sebastian Stan, Adam Person e Renate Reinsve.
Avaliação: 3.5/5
Um Homem Diferente (A Different Man, 2024)
Direção: Aaron Schimberg
Roteiro: Aaron Schimberg
Gênero: Thriller, Drama, Comédia
Origem: EUA
Duração: 112 minutos (1h52)
48º Mostra de São Paulo (Perspectiva Internacional)
Sinopse: Edward é um aspirante a ator que passa por um procedimento médico radical para transformar sua aparência. Mas esse tão sonhado novo rosto logo se transforma em pesadelo, à medida que ele não consegue o papel para o qual nasceu para desempenhar e passa a ficar obcecado em recuperar o que foi perdido. (Fonte: Mostra de SP)