Os Enforcados sedimenta a habilidade de Fernando Coimbra como diretor, através de um thriller criminal intenso e que provoca risadas – de diversão e de nervoso.
Mais de dez anos depois de lançar o excelente thriller O Lobo Atrás da Porta, Fernando Coimbra retornou às terras brasileiras para dar vida a um projeto idealizado desde as filmagens do anterior. Trata-se novamente de um thriller criminal, mas que dessa vez abraça uma forma de comédia ácida e com tons mórbidos para mergulhar no vasto – e violento – universo da contravenção penal carioca, com influências shakespearianas e interessantes paralelos históricos e políticos.
Logo na primeira cena, o cineasta já brinca com seu espectador a partir de uma possível cena envolvendo um sequestro, que logo se revela uma brincadeira comum à intimidade do casal protagonista. Tal situação já é uma excelente maneira de introduzir os personagens de Regina (Leandra Leal) e Valério (Irandhir Santos), diante do caráter excêntrico e, posteriormente, da ausência de escrúpulos para a jornada que terão ao longo da narrativa, na interminável sede de poder pelo controle financeiro e político da contravenção penal.
Em uma narrativa de que mescla elementos de Hamlet com Macbeth, a vingança por eles planejada para subir ao poder, no entanto, não conta com uma série de fatores externos. É como se levassem a cabo um plano simplista, acreditando que o mundo não possui variáveis por eles desconhecidas, e também, é claro, que fogem ao controle de qualquer um – afinal, os seres humanos são imprevisíveis.
Enquanto de um lado do casal surge a necessidade do controle de uma série de atividades, fruto do império criminoso herdado, de outro resta uma assombração pelas atitudes tomadas, que logo se torna uma paranoia. Tudo fica ainda pior com as cobranças vindas de dentro do próprio universo do crime – e das outras lideranças – bem como a investigação policial começa a fechar o cerco para os dois.
No meio desta bola de neve que não para de crescer, e desce rolando, se aproximando cada vez mais deles, Coimbra se diverte ressignificando a relação do casal a partir dos próprios hábitos trabalhados ao longo do filme, misturando as figuras de marido e mulher até mesmo com seus fetiches sexuais, tornando-se impossível saber até que ponto os personagens se dividem. A montagem assinada por Karen Harley, na base da ironia, ressalta a desconfiança mútua que se estabelece, enquanto já não sabem em quem mais podem confiar.
Nessa comédia de erros, o microcosmo no qual se insere, por diversas vezes cede espaço para, simbolicamente e metaforicamente, falar sobre História e Política de maneiras gerais e amplas, enquanto retrata elementos históricos de sucessão a partir da própria imagem de Valério e a tomada do império criminoso – como na ótima cena da coroação na escola de samba, enxergando-se como um rei, e na posterior destruição do lugar, com a manifestação de uma corte repleta de inimigos que precisam ser retirados, e no combate à força e com violência dos possíveis interessados em usurpar o trono.
Essa transformação pelo qual passam, de um casal apaixonado para desconfiados até do próprio amor, é acompanhada por uma trilha que trabalha nas entrelinhas da narrativa, explorando sentimentos e contribuindo na construção de um clima, sobretudo no clímax, junto à ótima fotografia que sugere um aprisionamento, onde a imprevisibilidade toma todas as rédeas, e qualquer coisa pode acontecer – até porque são personagens fictícios, ainda que personalidades reais possam ter servido de base.
Já na reta final, a mise-en-scène de Coimbra é a cereja do bolo em sua revelação como um diretor ímpar, diante das disposições dos objetos de cena e dos personagens, apontando para uma batalha final que, no entanto, pode acontecer de inúmeras maneiras. É quando consegue encerrar o filme com algo tão, ou até mais impactante, do que fizera em seu projeto anterior, algo que julgava difícil de ser possível.
O que fica claro em Os Enforcados é a habilidade do diretor enquanto artista da imagem para contar sua história. Pois o que Fernando Coimbra faz de melhor é enforcar seus personagens nas próprias escolhas, sob um mar de conflitos e variáveis, espalhados por todos os lados, e sempre na iminência de um grande golpe os atingir de maneiras inesperadas, vindos de fora, de dentro da organização, ou pior, da própria casa. E não se tem isso só por conta de um bom roteiro, mas pela maneira como tudo está posicionado dentro do filme, seja por uma arma, uma faca ou até mesmo um carro da polícia, levando o sentimento da tela e do personagem também ao espectador, em uma manipulação por parte de todos que nos imerge nas incertezas que constrói.
Avaliação: 4.5/5
Os Enforcados (Idem, 2024)
Direção: Fernando Coimbra
Roteiro: Fernando Coimbra
Gênero: Thriller
Origem: Brasil
Duração: 123 minutos (2h03)
48ª Mostra de SP (Mostra Brasil)
Sinopse: Em um Rio de Janeiro tomado pelo crime, o casal Valério e Regina se vê envolvido em dívidas e traições herdadas da família de Valério. Uma noite, eles encontram o plano perfeito. Mas, ao executá-lo, são sugados por uma espiral de violência que parece não ter fim. (Fonte: Mostra de SP)
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