The Shrouds mantém viva a fascinação de Cronenberg pela morte, mas não consegue amarrar seu desfecho diante de tantas ideias.
O fato de The Shrouds se tratar de um projeto de série nunca levado adiante diz muito sobre sua estrutura longa, que nunca busca por respostas ou conclusões, mas por um ar de mistério constante, aos poucos notadamente mal resolvido em razão da duração. Originalmente, dois episódios foram escritos por Cronenberg e apresentados para a Netflix, cujos executivos, em suas palavras, “se encontravam encantados pela sua pessoa, mas não por sua ideia”. Acreditando no potencial do texto, o cineasta não se deu por vencido, e o transformou em filme – este que vemos aqui.
Mais do que tudo, é perceptível que o personagem de Vincent Cassel é claramente inspirado no próprio Cronenberg, após o falecimento da esposa, Carolyn, em 2017. E não são poucos os elementos que nos permitem compreender que o diretor praticamente se colou em frente a câmera, desde a religião judaica de Becca (a falecida esposa do protagonista) até a própria caracterização do ator, das vestimentas ao corte de cabelo, assustadoramente idênticos aos de Cronenberg.
Dentro de seu eixo temático, de fascinação pelo corpo e, agora cada vez mais, pela morte, ele se coloca diante da possibilidade de ver o corpo em decomposição, como forma de ainda se aproximar daqueles que não estão mais aqui. É justamente a função das “mortalhas”, que funcionam através de uma controversa tecnologia capaz de enxergar o que há por baixo da terra e mapear os corpos enterrados de maneiras incrivelmente realistas. Mas pontos estranhos nos ossos de Becca o fazem perder o sono.
É a partir da própria tecnologia que The Shrouds a critica, dentro de uma necessidade constante de o ser humano atual encontrar-se conectado à internet, gerando dados e sem sequer importar-se com a privacidade, e menos ainda na morte, sem dar a mínima para a honra ou descanso das pessoas falecidas.
Nisso, Cronenberg aproveita também para se situar dentro de uma nova e quase invisível “guerra fria” do mundo atual, com influências vindas da China, Rússia e EUA, e brincando com teorias da conspiração. O prazer em muitos aspectos se converte em explorar esses absurdos, e coloca em xeque a realidade: seria a paranoia algo justificável? Estaríamos sendo vigiados e controlados.
O protagonista transita em tantas questões sendo jogado de um lado para o outro, e se sentindo cada vez mais angustiado nesse mundo de estímulos e sem exatamente saber em quem pode ou não confiar – talvez nem mesmo na própria falecida esposa ele pudesse, afinal.
É pelo sexo, pelos negócios e até pela família que surgem essas perturbações, em um ar de mistério que perdura durante toda a narrativa, e se estabelece lentamente, entre uma ou outra passagem cômica, algo recorrente, e de um humor bastante mórbido que combina com a temática, e transforma toda a tecnologia das mortalhas e suas questões correlacionadas em uma mera ironia nesse universo de desconfiança e mentiras.
Acontece que, apesar do eixo temático certeiro e até das próprias ironias, parece que Cronenberg apenas filmou o que havia sido escrito, sem buscar por adaptar seu projeto para que se encaixe como um filme. E são tantas ideias legais, de mistério e conspiração, que acabam ficando soltas em The Shrouds, enquanto não há uma busca para que sejam resolvidas – ao menos não de maneira instigante. É tudo jogado, sugerindo mais do que efetivamente mostrando, dentro de uma verborragia e um desfecho que pouco faz sentido para que se encerre como um filme, amarrado de qualquer jeito apenas para terminar, depois de quase duas horas bem interessantes. Se houvesse uma continuação, até poderia ser compreensível um final abrupto como este, mas sabendo que não haverá, é difícil não se decepcionar com um filme tão legal, que basicamente se estende em um infinito segundo ato, que acaba antes de chegar no terceiro.
Avaliação: 2.5/5
O Senhor dos Mortos (The Shrouds, 2024)
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Gênero: Thriller, Drama, Ficção Científica
Origem: Canadá, França
Duração: 116 minutos (1h56)
48º Mostra de São Paulo (Perspectiva Internacional)
Sinopse: Karsh tem 50 anos e é um empresário renomado. Inconsolável desde a morte da esposa, ele inventa a GraveTech, uma tecnologia revolucionária e controversa que permite aos vivos monitorar entes queridos em suas mortalhas. Certa noite, vários túmulos são violados, incluindo o de sua falecida companheira. Então, ele sai à procura dos culpados. (Fonte: Mostra de SP)
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