Em Dahomey, Mati Diop se interessa em debater a colonização a partir da devolução de peças saqueadas, entre as diferentes perspectivas na voz de seu próprio povo.
Logo em seu primeiro plano, ao filmar um pequeno camelô vendendo souvenirs de Paris em frente a Torre Eiffel, Mati Diop já introduz, sem nada precisar dizer com palavras, a temática central de seu documentário vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlin, Dahomey. É uma visão sobre a relação entre o colonizador e o colonizado, perpassando os últimos duzentos anos do um ponto de vista social, e estabelecendo uma ponte entre o passado e o presente apenas por meio de debates e usando a imagem dos tesouros que dão origem ao filme.
É que em 2021, após um acordo entre os governos, a França aceitou devolver à República de Benin vinte e seis tesouros saqueados e levados do país da África Ocidental durante uma guerra no final do século XIX, por volta de 1892. Durante os últimos duzentos anos, tais objetos, itens religiosos e representativos da cultura e mitologia da nação, estiveram em exposição nos museus franceses, tratados como troféus de uma época de colonização.
A devolução dos objetos à Benin representa um avanço na luta de tantos países por reaver seus tesouros saqueados durante os séculos de colonizações europeias – que vão muito além da África, a que mais sofreu, e inclui também a Ásia e as próprias Américas. Mas, por outro lado, representa também um debate bastante divisivo: apesar das vinte e seis peças devolvidas, a França chegou a saquear, só de Benin, mais de sete mil itens do reino de Daomé (Dahomey). E os demais? Seria este motivo de comemoração, de vitória, ou apenas mais uma etapa de uma luta que está (muito) longe de terminar?
É justamente a partir da voz do próprio povo que Mati Diop joga essas tantas perguntas ao espectador. Filmando debates realizados em uma universidade de seu país, e buscando a todo tempo por uma contraposição de ideias, a cineasta explora, a partir do caso concreto, a importância da cultura local na formação da identidade pessoal. É sobre o compreender, cada qual em seu território, de onde viemos, quem somos e sobretudo, do porquê somos. Mesmo que seus olhares estejam voltados ao próprio país, é uma discussão, em boa parte, válida para todos, enquanto pátridas de alguma das nações ao redor do mundo, carregando, consigo, uma história que transcende o próprio conhecimento.
Por outro lado, em meio às discussões e a pluralidade de ideias buscada, em momento algum Diop deixa de lado a relevância das peças “resgatadas”. Os próprios objetos, filmados desde a exposição na França até o processo de mudança e exposição em seu país de origem são usados como a ponte para o diálogo entre o passado e o presente, e com um toque de fantasia, a voz grave e rouca da peça de número 26 representa, basicamente, uma visão da cineasta para o caso, em um tom lírico com contornos de poesia, reproduzindo a voz de um objeto que já viu inúmeras transformações no mundo.
Com isso, Dahomey rompe com a fórmula de filmes semelhantes, ao colocar o didatismo expositivo para o lado e abraçar, com força, o debate. Não são necessárias muitas explicações para fenômenos históricos óbvios, nos quais existem apenas dois lados: colonizador e colonizado. Se durante muito tempo ouvimos a voz e olhamos pela perspectiva do colonizador, agora é hora do colonizado ter a chance de contar as próprias histórias, e revelar para o mundo os próprios sentimentos. Uma vitória no Festival de Berlin é mais um passo nessa direção, na qual a história deve ser vista por todos os lados e perspectivas possíveis.
Avaliação: 4.5/5
Dahomey (Idem, 2024)
Direção: Mati Diop
Roteiro: Mati Diop e Malkenzy Orcel
Gênero: Documentário
Origem: França, Senegal, Benin
Duração: 68 minutos (1h08)
48º Mostra de São Paulo (Perspectiva Internacional)
Sinopse: Novembro de 2021. Vinte e seis relíquias do Reino do Daomé estão prestes a deixar Paris para regressar ao seu país de origem, a atual República do Benim. Os artefatos, assim como milhares de outras peças, foram saqueados pelas tropas coloniais francesas em 1892. Mas qual postura adotar em relação ao retorno dessas obras ancestrais a uma nação que precisou se construir na ausência delas? Enquanto o espírito desses itens é libertado, o debate sobre o tema se intensifica entre os estudantes da Universidade de Abomey-Calavi. (Fonte: Mostra de SP)
Comments