A dor do vazio é explorada por Walter Salles em Ainda Estou Aqui, enquanto desconstrói a família Paiva com sensibilidade em um doloroso retrato dos efeitos da Ditadura Militar brasileira.
Neste ano de 2024, chegamos aos sessenta anos de uma das épocas mais sombrias da história brasileira: a Ditadura Militar. Não à toa o cinema tem mantido viva a memória de fatos e momentos que jamais podem ou devem ser esquecidos, e com eles feridas incuráveis, superficialmente cicatrizadas, mas que internamente sempre permanecem abertas. Foi o caso de Lucia Murat, e a manifestação de suas vivências em O Mensageiro; a violência da tortura e da indiferença em Entrelinhas, de Guto Pasko; e, dentre outros longas, agora o retrato sensível das dores sentidas pela família Paiva, em Ainda Estou Aqui, nas mãos do habilidoso Walter Salles, baseando-se no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva.
Aos olhos de quem não conhece a história brasileira, Salles, com sua direção, busca por uma introdução visual a partir da rotina da família Paiva e das inconveniências geradas pelo constante sentimento de enclausuramento criado pela ditadura. São os helicópteros do exército passando, caminhões militares para todos os lados, blitz em cada túnel e avenida, e a violência dos soldados em suas revistas. Era uma época conturbada, de incertezas, e de uma violência invisível.
Toda a semiótica do primeiro ato indica justamente uma sensação de apreensão, com uma ameaça à vida e à liberdade latente representada pela presença do exército brasileiro por todos os lados. Mais do que apenas esse cenário como uma rotina comum, Eunice Paiva, na pele da versátil Fernanda Torres, é quem mais manifesta um sentimento de insegurança diante daquilo que se constrói ao seu redor, como uma assombração que não a deixa em paz.
Quando os militares invadem o perímetro da família Paiva, adentram a suas vidas pessoais, e as transformam para sempre, essa assombração que antes eram apenas vultos gerais toma formas assustadoras, de seres humanos. A fotografia de Adrian Teijido abandona os toques quentes do verão carioca para o escuro do luto, e antes mesmo de saber como tudo aquilo continuaria, os toques de vermelho ao redor de Selton Mello, vivendo Rubens Paiva, escolhidas por Salles e pela direção de arte assinada por Carlos Conti já nos dava indícios das cenas dos próximos capítulos: talvez ele nunca voltasse.
Apesar de em certo momento Salles explorar com Eunice os porões da ditadura, o diretor em momento algum apela para o aspecto gráfico. Tudo é apenas sentido através das paredes grossas e do escapar sonoro de gritos de dor e misericórdia, voltando seu olhar muito mais à tortura psicológica de estar preso naquele ambiente insalubre do que efetivamente aos aspectos físicos. A impotência é o sentimento mais profundo, ainda mais depois da soltura da personagem, junto com a insegurança de se viver naquele Brasil.
Tudo o que segue para depois disso é a representação de uma luta – pela verdade, pela justiça. Mesmo que aliviado, o sentimento de clausura permanece com a vigilância constante, e o medo se materializa no isolamento, com o receio de manter cada relação com amigos, em cada recepção de pessoas na casa da família, e em cada contato com outros seres humanos do círculo social.
Aos poucos, o que cresce é o vazio da ausência – de um marido, de um pai, de um membro da família, desde sua falta na casa, no escritório, no sofá, na cama e até mesmo através um casaco deixado para trás. É o aceitar que os Paiva viverão para sempre com esse desaparecimento repentino, e com a eterna dúvida sobre o que aconteceu. Mas apesar de tudo, a memória de Rubens Paiva subsiste, e para sempre, Eunice “estará aqui” (com o perdão do trocadilho). É justamente nessa intenção, de esperança e justiça que toda a construção da personagem se dá a partir de tonalidades verdes, do figurino a alguns dos principais enquadramentos trabalhados na divulgação da obra.
Marcelo Rubens Paiva fortalece essa memória do pai com a escrita do livro, e Murilo Hauser e Heitor Lorega (roteiristas), junto com Walter Salles contribuem para mantê-la viva com Ainda Estou Aqui, que apesar de retratar as dores de uma família específica, com muita sensibilidade e aproximando nós, espectadores, dos sentimentos por eles vividos, serve para tantas outras que passaram pelo mesmo processo doloroso, de um luto eterno e incerto, que começou ainda antes da própria morte. É um filme, que assim como tantos outros, de momentos diversos da humanidade, serve para nos lembrar de nunca esquecer, para justamente nunca mais deixar acontecer.
Avaliação: 5/5
Ainda Estou Aqui (Idem, 2024)
Direção: Walter Salles
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega, adaptado de Marcelo Rubens Paiva (livro)
Gênero: Drama
Origem: Brasil, França
Duração: 136 minutos (2h16)
48ª Mostra de São Paulo (Mostra Brasil)
Sinopse: Rio de Janeiro, início dos anos 1970, quando o país enfrenta o endurecimento da ditadura militar. Estamos no centro de uma família, os Paiva. Vivem na frente da praia, numa casa de portas abertas para os amigos. O afeto e o humor que compartilham entre si são suas formas sutis de resistência à opressão que paira sobre o Brasil. Um dia, eles sofrem um ato violento e arbitrário que vai mudar para sempre sua história. (Fonte: Mostra de SP - Adaptado)
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