A Mensageira discute o aparelhamento da Justiça e a corrupção no Poder Judiciário através de thriller lento e angustiante.
Logo em sua primeira cena, A Mensageira já coloca o espectador diante do dilema moral encarado pela protagonista Íris (vivida por Clara Paixão), uma oficial de justiça que acredita na eficiência da lei e no poder Judiciário. No cumprimento de um mandado, o diretor Claudio Marques a filma parada, assistindo à destruição de moradias populares de uma comunidade que alega possuir direito àquelas terras, e manter um diálogo ativo com o Estado para sua regularização. Pouco importam os gritos de desespero daqueles que perdem tudo, ou o choro pedindo piedade: ela e sua colega, Edvana, apenas cumprem ordens.
É uma enorme desilusão para a personagem, que começa a questionar seu próprio trabalho e as intenções das ordens que recebe, suas procedências e as injustiças sociais referentes ao acesso à justiça – ainda mais sob o manto da discriminação racial, presente a todo tempo. Seu aspecto inocente e crente na eficiência do Estado aos poucos começa a se transformar a partir daquilo que vê com seus próprios olhos enquanto trabalha, e indefesa, não consegue interferir para mudar, pois as ordens sempre vêm de quem está (muito) acima dela.
Não é à toa que a fotografia assinada por Flávio Rebouças trabalha essencialmente com o preto e branco, uma forma encontrada pela direção de Claudio Marques para ilustrar não só os sentimentos da protagonista, mas também o universo obscuro em que ela está disposta a entrar para tentar interferir em favor da justiça (verdadeira). É o submundo da corrupção governamental, do lucro com a pobreza, com os esquemas ilegais, dessa vez manifestados através do Poder Judiciário, inevitavelmente ligado, mas sem tanta ênfase, também ao Legislativo.
Em meio ao trabalho investigativo da protagonista, enquanto busca compreender aquilo que está a sua frente há tanto tempo sem que nunca tenha sequer percebido, o longa trabalha também com passagens fantasiosas, que conferem ao thriller um ar de tensão muito bem-vindo que até mesmo flerta com o terror, mas justamente onde o filme também acaba se estendendo mais, e camuflando sua exposição excessiva com uma forma um tanto poética, falando muito pelas entrelinhas através do personagem de Vladimir Brichta, com a função de personificar a corrupção.
É no desenrolar do esquema criminoso onde o filme encontra suas maiores fragilidades, pela maneira como é revelado à personagem – até mesmo dentro da fantasia, em algumas oportunidades -, e em como, mesmo com suas duas horas e vinte de duração, acaba encontrando pouco espaço para encerrar a narrativa com mais ênfase nas ações combativas de sua personagem.
As consequências, naturalmente, são assustadoras – e Claudio Marques soube impactar muito bem com uma cena memorável em seus minutos finais, em uma referência brutal à algo que já sabemos ter ocorrido no Brasil -, mas ainda faltou um pouco de vigor para ir além e explorar mais do que e como houve, como um resultado a todo o trabalho de redenção da protagonista diante de tudo aquilo que foi “forçada” a fazer (através das “ordens”), e a incomodava.
Talvez a montagem poderia ter reestruturado um pouco a obra, e quem sabe até a diminuído – os cento e quarenta minutos nunca chegam à monotonia, mas em algumas passagens falta dinamismo, o que pode levar ao cansaço do espectador ao longo da projeção. Mais ainda, havia potencial para aproveitar melhor das consequências, e torna-las ainda mais manifestas como um resultado para um Brasil melhor, ainda que os apresentados sejam satisfatórios, sobretudo sob a ótica racial e da desilusão com o que acontece por debaixo dos panos.
Avaliação: 3.5/5
A Mensageira (Idem, 2024)
Direção: Cláudio Marques
Roteiro: Cláudio Marques
Gênero: Drama, Thriller
Origem: Brasil
Duração: 140 minutos (2h20)
13º Festival Olhar de Cinema (Competitiva Brasileira).
Sinopse: Em cumprimento ao seu trabalho como oficial de justiça em Salvador, Íris entrega mandados e, muitas vezes, se vê forçada a executar ordens que vão diretamente contra aquilo em que acredita. O ofício a atormenta. Um dia, com o desaparecimento de um militante depois da execução de um mandado entregue por ela, a oficial passa a investigar o crime e se vê envolvida na descoberta de um grande esquema de grilagem de terras. (Fonte: Olhar de Cinema)
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